terça-feira, 21 de outubro de 2014

Por Fernando Gabeira: Um vírus batendo na trave

Fernando Gabeira
Suspeita de ebola e a presença da Aids no Brasil colocam o programa da preparação nacional como algo que transcende aos governos

Na semana passada, levamos um susto: ebola. Um homem que veio da Guiné foi considerado, em Cascavel, suspeito de trazer o vírus do ebola. Felizmente, não houve nada. E sobretudo nossos mecanismos de segurança funcionaram bem. O governo cumpriu o protocolo da OMS, fez tudo corretamente. Lembro-me da chegada do vírus da Aids. Como foi difícil reagir. Os pacientes visitaram Nova York, e parece que o vírus veio de lá, via Haiti.

Cheguei a contatar o ministro da Saúde e enfatizar o perigo de epidemia. Naquele momento, Aids era uma doença minoritária, e ele estava concentrado nos males que dizimavam nossa população mais pobre. Mas o vírus se propagava rapidamente. E acabamos superando o tempo perdido, aprovando inclusive um projeto que garantia o coquetel de drogas gratuito.

Desta vez, já começamos de forma organizada, e creio que temos muitas chances de evitar algo grave no Brasil, embora casos esporádicos sejam previsíveis. Apesar de ter surgido na África, o ebola contaminou europeus e americanos. Num ensaio intitulado “A solidão dos moribundos”, Norbert Elias fala da tendência moderna de isolar os pacientes terminais. Nesse caso, é necessário. No entanto, sente-se a sensação de isolamento dos pacientes, vendo apenas pessoas cobertas da cabeça aos pés, como se, antes de morte, visitassem um frio e distante planeta. Autor de longo ensaio sobre morte, Philippe Ariés, em “História da morte no Ocidente”, defende que antigamente as pessoas morriam serenas e calmas. Elias acha essa visão um pouco romantizada.

A verdade é que a maneira de morrer na África, a proximidade comunitária dos moribundos, os ritos fúnebres, beijos e abraços no morto, tudo isso é mais caloroso, mas, no caso do ebola, é o caminho mais perigoso. Num outro extremo, uma escola americana proibiu um livro de John Green, “A culpa é das estrelas”, porque falava de morte. E ele perguntou: devemos manter nas crianças a fantasia da imortalidade?

Não tenho resposta definitiva para isso. Tudo que sei é que a morte incomoda e é o tipo de tema que nem sempre rende grandes públicos. Simon Critchley escreveu um livro sobre como morrem os filósofos. Ele analisou inúmeros casos, tentando comparar o discurso sobre a morte e a morte real do pensador. A posição pessoal de Critchley é próxima dos epicurianos: encarar a mortalidade como um ato de contentamento; não se conta com um tempo ilimitado de vida, mas se livra da angústia da imortalidade.

Curiosamente, a irrupção de um vírus sempre traz algumas novas reflexões sobre a morte. Lembro, na época em que surgiu a Aids, de um médico tcheco que disse: a Aids é uma doença letal contraída na relação sexual, mas a vida também é uma doença letal contraída na relação sexual de nossos pais. O preconceito que vimos na Aids começa a aparecer também com gente que vem da área do ebola. Um time de futebol de Serra Leoa teve de usar um hotel exclusivo em Camarões, porque nenhum hóspede se arriscava a conviver com os jogadores.

Com o ebola, será com mais dinheiro do Ocidente, cuidado, informação. É, então, encarar o medo com a tranquilidade do cantor Morrissey, que sofre de câncer: se morrer, morri. Paradoxalmente, é possível constatar que, de um vírus para outro, melhoramos nessas duas décadas. Há mais contatos internacionais, mais preparação.

Circulam em blogs e pela rede boatos de que o governo simulou essa suspeita de ebola para abafar os depoimentos sobre a corrupção na Petrobras. Posso até achar que o governo use o medo como tema de campanha eleitoral: desemprego, fome, volta ao passado, arrocho, todos os fantasmas. Mas não usaria um vírus como cabo eleitoral. O ebola é um tipo de inimigo diante do qual estamos irremediavelmente juntos. As eleições serão resolvidas por mamíferos racionais. O vírus é uma espécie de ficha-suja que não entra no processo. Mesmo porque o escândalo na Petrobras tem uma longa temporada pela frente, e todos os exames, até agora, indicam resultado positivo.

Na minha experiência, o episódio da suspeita de ebola e a presença da Aids no Brasil colocam o programa da preparação nacional como algo que transcende aos governos. Tive a oportunidade ver isso não só no caso da Aids, como em Goiânia, com o episódio do césio 137 que contaminou alguns moradores de uma mesma rua.

Ali, a preparação era precária, mas um grande médico especialista em contaminação radioativa, Alexandre Rodrigues Oliveira, e uma unidade hospitalar da Marinha, com enorme esforço, conseguiram atender os pacientes. A capacidade brasileira de enfrentar esse tipo de crise é um lado da história. O outro é ainda a fragilidade de nossa Defesa Civil. Que o digam a Serra Fluminense e outras áreas de desastre ambiental. Sem o ebola, o foco no Brasil permanece nas eleições. Foi apenas um susto para nos lembrar que o mundo existe. Com tantas tragédias e emoções, o vírus parece ter perdido o prazo de inscrição em 2014.

Fernando Gabeira
OGlobo 

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